quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Um pouquinho que ninguém tem

O negócio é que eu já estava acostumado a viajar nas férias pra Santa Catarina um pouco antes do ano novo, mas sempre levava algum primo, amigo, qualquer pessoa que eu consiga, depois de um tempo, poder lembrar das histórias daquela viagem. Não sei o motivo que fez com que dessa vez fosse diferente e ninguém embarcou junto. Éramos só nós: eu, pai e mãe. Não que passar duas semanas com eles fosse a pior coisa do mundo, mas ir pra praia de madrugada sozinho também não era uma das melhores. E não seria por isso que eu ficaria dormindo.

Peguei a carteira, o mp3 (quase sem bateria), deixei o celular no apartamento e fui pro mar. Acho que já tinha passado da meia noite, mas não sei se em cidade praiana a lua costuma ficar parada no mesmo lugar a noite toda, ou eu que não presto atenção mesmo. Pelo menos reparei que um grupo de turistas cariocas estavam indo pro mesmo lugar que eu: a beira do oceano. E cantavam, se abraçavam, riam de tudo, até do vendedor de bóias jurando que ia conseguir vender alguma coisa naquele horário. Acho que estavam fumados. Não que eu duvide da felicidade alheia, mas o cheiro também deixava claro. Sentei um pouco longe, deitei e dei play. Não terminou nem a primeira música e ela veio.

- Tá ouvindo o que, garoto?
- Cássia Eller.
- É? Ela era vizinha da minha mãe, quando tava entrando naquela vida bandida, 14 anos, só ouvindo Beatles, um pouco antes de ir pra Brasília.
- Quem? Sua mãe?
- A Cássia, mané!

Eu nunca fui muito admirador daquele sotaque. Um tio meu morou a vida toda no Rio e quando ia visitar a gente, só faltava eu pedir pra ele calar a boca. Tinha mesmo que ser tão diferente? Até pernambucano é menos irritante.

- E sua mãe era amiga dela?
- Pelo tanto que ela fala daquela época, acho até que se pegaram pelos corredores do prédio onde eu moro.
- Não é de duvidar... Pela Cássia, claro.
- É, melhor não imaginar como seria.

É lógico que imaginei. Mas não sei se iria gostar de ver minha mãe pegando a Cássia Eller. Ficaria com ciúmes.

- E porque tu não tá com seus amigos?
- Não sei, vi você aí goiabando e dei um perdido. Eles estão meio bêbados e beckiados. Não que eu não esteja, mas isso não quer dizer que tenho que ficar fazendo escândalo. Tô pensando em dar um rolê em algum pé sujo, bora?
- Se você me contar o que é um "pé sujo", quem sabe.
- Tá de caô? Pé sujo, léke, bar de esquina, tomar um mel! Levanta daí que vou te botar na fita. Só vou passar dar um alô pro bonde pra eles não acharem que eu fui sequestrada. Traumas da capital, tá ligado?
- É, acho que sim.

Não sei se eu fui junto por não ter outra coisa pra fazer ou por causa daqueles cabelos. Só poderia ser isso. O sotaque era horrível, as gíras então... mas aquele cabelo era quase intocável. Pensei em como ele devia ficar lindo quando ela acorda.

- Olha, é a primeira vez que venho pra cá, antes a gente sempre ia pra Búzios, então se tu conhece algum lugar sinistro pra ir, me guie. Nada de prego, neguinho!
- Você samba?
- Fala sério! Cê acha que eu com esse sotaque que você odeia não vou saber sambar? Aqui é só no sapatinho, mermão.
- Como você sabe que eu odeio seu sotaque?
- É só olhar tua cara de bucha. Mas vamo logo pra esse festerê aí que meus pés tão coçando já por um sambinha.

Cara de bucha? Que merda é essa? Nem quis perguntar pra não ficar pensando em uma cara melhor pra fazer quando ela abre essa boca pra falar essas bobeiras. Mas porra, que boca linda! Ela deve ser daquelas que nunca usa batom.

- Vai querer cerveja ou suco?
- Como assim suco?
- Não sei, maluco, tu fica aí de corpo fechado, parece que vai ficar pelando saco a noite toda.
- Ainda bem que tu não me conhece o suficiente pra saber que, pelando saco ou não, tô doido pra te deixar no chão quando começar a tocar Maria Rita.
- Então já é! Ô garçom, pintoso, traz 4 tequilas que eu quero ver esse paranaense pipocar na pixxxxta.

O negócio foi tenso. Ela deve ter se sentido nas gafieiras da vida. Não largava da cerveja, nem do meu pescoço. Eu não poderia me apaixonar agora, por uma carioca estranha que fala "irado". Ela dançava de um jeito que seria pecado mostrar na Sapucaí. E dançava ali, pra mim. Eu não poderia me apaixonar. Se a globeleza visse aquilo, choraria de tristeza, se aposentaria, iria pra Argentina aprender Tango. Tocou tudo que não poderia ter tocado, toda a trilha sonora que eu tinha criado pra distribuir pelas épocas da minha vida. Mas alguém quis que fosse jogado tudo de uma vez, numa noite só, no mesmo par de olhos verdes. Eu não poderia me apaixonar.

Já era umas 6 da manhã, o som ficou meio baixo e eu sentei numa cadeira de praia. Isso mesmo que eu queria lembrar: tinha cadeiras de praia dentro do bar. Como ninguém tinha pensado nisso antes? Ela veio junto e pediu uma água. Acho que conversamos até mandarem a gente embora. Eu não tinha pra onde ir, muito menos ela, então pra não contrariar sobre qual é o melhor refúgio nessas situações, corremos até a praia. Sem pedir ela pegou meu mp3 e colocou "Só tinha de ser com você", da Elis.

- Tu é dos meus, nego. Vou ficar grilada quando eu for embora.
- E quando vai?
- Hoje.
- Já?
- Sim, mas preciso agradecer algum deus por ter rolado esse lance com você.
- Viu só? Achou que eu não ia aguentar.
- Cê é meu rei, guri! É assim que vocês falam, né? Guri.
- Não, gaúcho que fala assim.
- Ah tá, vacilei.

Ela, imprevisível como durante toda a noite, me beijou no meio da rua, na frente de um casal de velhinhos que acordaram cedo pra comprar pão. Não sei com que força nas pernas levei ela até seu apartamento. Fiquei parado olhando ela entrar e subir, e do nada apareceu na sacada, me mandando o sorriso mais aconchegante guardado nas confusas gavetas da minha memória. Aliás, bem que eu disse que aquele cabelo fica lindo de manhã.

6 comentários:

Tay. disse...

Que lindo! Que lindo! Que lindo! Essa história me encantou.

Luciana disse...

Esse é o meu preferido.

Anônimo disse...

Lindo mesmo! Mas é "traz".

Marcus Paulo disse...

Opa!

gabi disse...

Você escreve tão bem que da até vergonha de comentar alguma coisa aqui, porque não fica a altura.

Anônimo disse...

Meu favorito, só isso.