terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Seminovos corações

Do meu livro de gramática da 8ª série:

"Quem diz seminovo diz semivelho, mas aí é que está a beleza da língua, e o dom de iludir: quem ouve seminovo não ouve semivelho. É só reparar no corpo, nas curvas, na pele das palavras - uma tem viço e alegria, a outra é encarquilhada e cinza - para concluir que esse papo de sinônimo é muito relativo. Um copo meio cheio é um copo meio vazio, não há como rebater essa lógica, tudo bem. Mas entre um copo meio cheio e um copo meio vazio cabe o mundo inteiro: muitas doses de esperança ou desencanto. No caso do seminovo, esperança de quem compra aquela Brasília 77 anunciada a bordo do promissor adjetivo que substituiu de vez o "velho" usado nos classificados de automóveis, e desencanto de quem, já proprietário da carroça, tem que dirigi-la com cuidado para não atolar o pé num dos buracos do fundo, pelos quais se vê os asfalto passar.

Dá no mesmo? Claro que não. E quem acha que seminovo é apenas um ardil de comerciante para enganar cliente otário tem razão, mas só em partes. Seminovo é mais do que um eufemismo, mais até do que desonestidade - é um exemplo do poder da resistência do ser humano, daquilo que somos capazes para nos preservar quando a barra pesa. Embute um modo de estar no mundo, quase uma cosmogomia. Se eu tivesse mais tempo e vergonha na cara, escreveria um livro de auto-ajuda que seria best-seller garantido: O eufemismo pode salvar sua vida.

Por que não imaginar, num esforço supremo de credulidade, que mandatos seminovos sejam capazes de restaurar nossas seminovas esperanças nesse Brasil seminovo de guerra? Não, a nossa moeda, a dignidade daquele senador e a reputação de nossos clubes de futebol não estão em frangalhos, estão apenas seminovas. E será que é tão difícil alimentar novas paixões em nossos seminovos corações? Eis aí a boa (semi)nova: nenhum de nós está ficando mais velho a cada minuto que passa. Estamos apenas ficando seminovos, cada vez mais seminovos. Faz uma tremenda diferença."