quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A torta e as cores

Conheço Milena desde a 5ª série, e o fato mais forte que provalece entre a gente é que nunca mudamos o corte do nosso cabelo. Não é pacto de amizade nem nada, eu gosto do dela, ela gosta do meu. Caso algum namoradinho pedisse pra que cortasse, que alisasse aqueles caixinhos vermelhos-de-sol, eu teria mil outros argumentos para que não. Assim tá ótimo, aqui ninguém rela.

Ontem de manhã passei numa padaria, comprei uma torta de limão e fui ao apartamento dela de surpresa. É impressionante como guardo todos os números do meu dia-a-dia num lugar bem reservado da memória, mas o daquele apartamento eu sempre esqueço. E esqueço em dobro, porque não lembro nem de anotar em algum papel pra nunca mais ter que ficar dando dicas pro porteiro sobre quem quero ver. Ele nunca sabe!

- Com licença, poderia interfonar pra Milena Pires?
- Quem?
- Milena Pires.
- Essa moça mora aqui mesmo?
- (Não, tô chutando de prédio em prédio pra ver se acho) Sim, uma morena quase ruiva que tem um carro azul.
- Calma, tem uma quase ruiva que morava aqui e foi pra São Paulo atrás do marido que fugiu com a amante.
- E o nome dela é Milena Pires?
- Não.
- ENTÃO!
- Mas e se tivessem duas Milenas morando nesse prédio?
- Moço, eu preciso saber o número do apartamento da Milena Pires, uma que tem uma bunda bem bonita.
- Ahhhhhh, a dona Milena, que sai de manhã e só volta a noite quando o turno não é mais meu. A bunda dela é bem convidativa mesmo... é 181, boa sorte!

Enfim, subi e ela estava dormindo. Lembrei sobre como acordar alguém de uma forma que faça sorrir é perfeitamente encaixado em um dos maiores prazeres da vida. Quase melhor que comer strogonoff depois de cantar a noite inteira em algum show foda. Botei a torta no criado-mudo e sussurrei algo não assustasse, significativo como qualquer frase roubada de Dear Prudence. Ela sorriu, abriu o olho esquerdo, me deu um abraço e tomou um gole de café.

- Sabe o que eu estava sonhando?
- Acho que não.
- Que estava num bar com um amigo e ele me disse sobre como nós, mulheres, nos enganamos quando pensamos que vocês são apaixonados por roupas vermelhas.
- Alguém se apaixona por cores?
- Por exemplo: se uma mulher for com um vestido vermelho em uma festa, o máximo que ela vai conseguir é arrancar lascas de inveja das outras mulheres. Enquanto isso, outra moça chega na dela, com um vestido azul aberto nas costas, deixando a tatuagem aparecer um pouco, bronzeada até certo ponto e com um perfume não tão doce. Quem você acha que vai chamar mais atenção?
- Eu casaria com a de azul, só isso. Mas e no caso de uma lingerie?
- Ah, a cor da lingerie tanto faz. Não sendo aquele bege areia de praia artificial, tá ótimo.
- Tem gente que é exigente, sempre prefere uma cor específica.
- E se eu estiver sem nada pro baixo? Você vai me mandar vestir alguma coisa sendo que depois vai tirar?
- Eu? Eu não, nessas horas até gostaria de ser daltônico.
- A lingerie não importa, o que importa é gozar.

Foi ali, naquela cama desarrumada, com bafinho de café, que ela me convenceu. Milena sempre estava certa, e provava suas certezas de uma forma tão natural que seria o maior atrevimento do mundo se eu não concordasse. A torta ficou pro jantar, e o cabelo do mesmo jeito de sempre.