segunda-feira, 18 de março de 2013

Gratidão em vida

- E como eram os verões em que ela ainda estava aqui?

- Eram normais, pois agora é que são diferentes. Tão mórbidos quanto invernos. Gela os ossos, congelada a alma. Só de lembrar que ela esquentava meu corpo e minha mente... e agora? Ventania sobre janelas fechadas. E apesar de tudo ainda me traz paz, sabia? De um jeito bastante indireto que você só entenderia se tivesse vivido tais dias como eu vivi. Gosto quando você quer saber sobre ela. Assim como gosto quando os traços dela são tão evidentes no seu jeito de andar, fazendo-me apaixonar de uma forma tão fraternal que quero te cuidar pra sempre - assim como ela cuidaria. Cada gesto numa investida de orgulho em ver que a tão cobiçada menininha cresceu. Se sentiria mais iluminada ainda ao ver seu caderno de desenhos: cheio de flores, animais e todas aquelas naturebas que ela gostava - e que às vezes até me irritava. Houve um tempo em que discutíamos sobre um jardim onde não havia mais espaço. Sempre soube que a casa ficaria ainda mais florida e ela sempre quis provar pra mim que cada pétala serviria para florir uma vida. Talvez a minha, talvez a dela, talvez a sua, ainda que planejada. E quando o Dr. Cunha, naquela tarde de terça-feira confirmou que você viria, a primeira coisa que ela pensou foi em seu nome. Qual flor ela escolheria para gritar (meio que recitando, com aquela voz de veludo) enquanto você corria descalça com os pés cheios de lama e argila pela casa. Não escolheu Rosa à toa, mesmo sendo a mais comum entre as flores que servem para nomear mulheres lindas, com a força da beleza representada em espinhos que machucam, mas abrem os olhos caso outra flor queira te libertar o sangue. Você é a rosa que ela plantou mas não pôde ver crescer. E entre todos o privilégios improváveis sobre a morte, o que se carrega é a maior prova de vida. A ausência dela me apunhala todas as noites pelas costas... enquanto isso, me abraça pela vontade de querer te ver crescendo, pois a cada dia que continuo em pé é uma forma de confirmar que eu vivo e sempre vou viver por ela.

O pai cobriu a menina e voltou para a cozinha. O amargo do café era só mais um sintoma de saudade.