terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Não precisa mais chorar, mãe

A madrugada de hoje foi difícil. Poderia dizer que mais que todas as outras, já que, apesar do sol cortante de ontem, no meio da noite começou uma chuva estranha e só parou agora de manhã. Não sei ao certo o motivo de ter arriscado tanto minha vida nesses últimos meses, sendo que pensei que não aguentaria nem um final de semana longe de você, mas pior seria ter de aguentar sua mente fechada e sua voz alta quando a ignorância batia e só lhe restava gritar para combater meus argumentos. Não há coisa que irrite mais que gente que grita, mãe, e eu sempre quis que alguém te explicasse isso.

Aqui na rua aprendi muita coisa, desde malabarismo com pinos de boliche até tocar Bossa Nova pra conseguir algum trocado na esquina da antiga locadora. Seu Lelé, o mais veterano da "nossa área", disse que tenho facilidade com o mundo, que transformo as dificuldades em bolhas de sabão que a gente faz durante o banho: até que são bonitinhas, mas é melhor acabar com elas antes que estourem nos olhos. E é impressionante como todos se ajudam na Rua Coutinho. Os comerciantes nos dão lonas pra usar quando o vento vem forte, e quando o movimento na padaria do Nunes é bom, ele até libera algumas empadas e sucos naturais. Acredite, mãe, eu aprendi a tomar suco natural, principalmente de abacaxi. Em troca disso, nós fazemos a segurança noturna. É tipo um feudalismo moderno, mas ao nosso favor, se é que me entende. Você iria gostar da Dona Cecília, 64 anos e, apesar da falta de higiene, continua com a aparência jovial. Acho que a vovó sentiria inveja dela. Tu anda lendo os jornais? Uns dias atrás fizeram uma matéria sobre sobre os assassinatos que ocorrem por aqui. Queimaram um colega meu enquanto dormia, mas me disseram que ele devia até as cuecas (que não tinha), tudo por causa de drogas. Gente assim, que procura qualquer causa pra pouca revolta, não merece tanta compaixão, mas achei melhor ficar quieto, até porque meu melhor amigo dessas noites mal acabadas, usa heroína. Diz ele que é pra aguentar o tranco, pra ser mais sorridente na hora de pedir dinheiro no semáfaro.

Quando fui embora, mãe, pensei até em suicídio, mas fui convencido pela Mallu, a moça por quem me apaixonei numa manhã de setembro, de que mesmo em terra, algumas coisas podem nos mostrar uma brecha de como o paraíso deve ser, se ele realmente existir. Por isso resolvi voltar pra casa. Vou deixar essa carta na caixinha do correio logo após você ir pro trabalho. Aliás, compre creme de barbear pra mim, acho que nem o Nero vai me reconhecer assim do jeito que estou. Preciso me despedir do pessoal, todo sábado a noite nos encontramos no beco 34, entre a Rua Limeira e a Avenida Atlântida. Muita gente aproveita pra vender crack por lá, mas eu só fico na cerveja, como sempre fiquei, e espero que você não fique igual desesperada me questionando sobre isso quando eu chegar. Até porque, mãe, viver sem roupa limpa, sem comida quente, sem dinheiro e sem meus cd's não foi assim tão difícil, mas dormir sem um beijo seu é cavar meu buraco na solidão.

6 comentários:

Tay. disse...

Você já pode parar de me comover com os seus textos mais que lindos, Marcus. Obrigada.

Anônimo disse...

A última frase foi a melhor!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rebecca Braschi disse...

lindo

Anônimo disse...

Esse texto continua me chamando a atenção de uma forma tão interessante que ainda não consigo ler as duas primeiras linhas e não terminar o resto. Gosto muito, muito mesmo.

Ô garoto, te prepara. Não vou te deixar escapar da próxima vez que te ver por aí, não. É até pecado fazer isso.

Anônimo disse...

Ps: sério.