segunda-feira, 12 de março de 2012

Chorar sorrindo

No próximo dia 27 faria três anos desde a separação que ela nunca entendeu. Era uma relação tão saudável, fruto de uma história bonita de colegial. Maria queria casar no campo, Luis só queria casar. Casaram dentro de um quarto de hotel, sem padre, direto pra lua de mel. Cinco anos depois Bia nasceu. Carequinha, carequinha. Aprendeu a falar cedo e falava tudo, menos papai e mamãe. Criança não pode chamar os pais pelo nome, né? Pega mal, mas Bia podia. Ela sempre podia tudo.

O desgaste acabou sendo maior que a paciência e aí veio o divórcio. Maria ficou com a casa, Luis e Bia foram morar no centro. Apartamento pequeno, tudo bem, não precisaria de muito espaço. Ela teve mais dificuldades em assinar os papéis que a própria filha em aprender a conviver diariamente sem a mãe. Torcia pra que ele tivesse uma amante, pelo menos assim teria algum motivo para lamentar. Mas não. Talvez o motivo fosse, justamente, não ter mais motivos. Virou ameno, sem cheiro e muito menos sabor. Maria passou o resto dos dias sem saber se sentiria algo novo, de novo. Não sofreu de solidão, só tinha medo de estar com alguém mais uma vez.

- Você vem na minha formatura?
- Claro, filha! Quanto vai ficar o convite?
- Eu consegui na secretaria da escola um pra ti, precisa pagar não. Vai ser sábado, 20 horas, naquele salão de festa perto do ballet que você achava que eu gostava de ir.
- Tudo bem. Posso levar uma amiga? Ela vem me visitar no final de semana e não queria dispensá-la.
- Pode sim, vou conseguir mais uma cadeira na mesa porquê agora ficou lotada.
- Sua vó vai? E suas tias?
- Vão todas, até uma amiga do Luis. Acho que eles estão namorando.
- Seu pai namorando?
- É, eu acho. Ele não me conta, mas desconfio.

Maria sentiu uma dor no estômago. Resolveu ficar pouco na formatura da filha, por motivos óbvios. Se saiu bem, foi simpática, matou a saudade da ex-sogra, bebeu com as ex-cunhadas e aproveitou o quanto pode. Larice, a nova namorada, era linda. Loira (natural, ainda bem) e de sorriso frágil. Deveria ter, no máximo, 25. Ficou sentada o tempo todo, com uma expressão que Maria havia experimentado anos atrás, a cara do primeiro jantar com a nova família. Bia se despediu da mãe e foi aproveitar a festa. Luis parecia 15 anos mais jovem.

Agora ela não tinha mais escolha: aceitava ou aceitava. Passou meses sem o mesmo contato de antigamente com a filha. Bia não estranhou, sabia o quanto a mãe ainda amava o ex-marido.

- Oi? Quem fala? - Larice atende.
- É a Maria. - meio gaguejando, meio querendo dar risada.
- Oi, Maria! Você quer falar com a Bia? Vou chamar, só um minuto.
Ela sorriu. Falar com Larice parecia ser ruim, mas não era.
- E aí!
- Ela é legal, né?
- É um amor, mas para de ciúme.
- Tá bom. Mas viu, você ainda tem aquela caixa de maquiagem que te emprestei pra formatura?
- Sim, tá aqui guardada, quer vir buscar?
- Vou passar amanhã cedo, ou você vai estar na aula?
- Não não, pode vir, resolvi estudar a noite pra cuidar de Larice durante o dia.
- Cuidar por quê? Ela é tão nova que ainda não aprendeu a não bagunçar a casa inteira?

Bia preferiu não responder e apenas disse para que a mãe ligasse quando estivesse chegando. E assim foi feito. Tocou o interfone e subiu. A filha abriu a porta e a convidou para entrar. Maria tinha uma reunião importante logo depois e resolveu se maquiar ali mesmo, não haveria problema. Foi até o banheiro, Bia sentou no chão e começaram a conversar:

- Que cheiro bom é esse? A Larice tá fazendo almoço?
- Não, ela tá no quarto vendo tv.
- São quase 11. Seu pai nunca me deixaria ficar deitada até as 11.
- Ela não tem escolha. Entre sentar e deitar eu também iria preferir ficar deitada.

A mãe não entendeu e continuou se arrumando. Blush, batom, delineador, perfume, chapinha, sapato, cinto apertado e discurso treinado. Quando escureceu o último dos cílios reparou em duas barras de metal dentro do box, na parte do banho. Como se fosse um corrimão. Em volta do vaso sanitário também. Saiu do banheiro e percebeu que a casa inteira era assim. Foi até o quarto e viu a cadeira de rodas encostada na parede ao lado cama. Larice dormia, provavelmente sonhando em voar. Bia não quis contar por não saber quais palavras usar. Disse que a madrasta sempre foi assim, desde os 10 anos de idade, e que Luis havia se apaixonado logo depois do divórcio.

Maria desmarcou a reunião e foi para casa. Chorou três dias seguidos, não de tristeza. Chorou pois descobriu do melhor jeito que um sentimento tão bom consegue prevalecer. Sempre. Mesmo aquele amor maior do mundo não sendo mais dela. Chorou sorrindo.

domingo, 11 de março de 2012

Aí ela disse: "Faz parte mas bem que não podia, né?"

Hoje eu acordei sem fome, sem sono, sem calor, sem nada. Com roupa, pelo menos. Acordei na maior indiferença, sem saber se as sensações normais da vida haviam sumido por desejo próprio ou se minha capacidade de sentir coisas mais importantes se tornou, consequentemente, importante. Passei o dia preocupado se isso seria bom ou ruim. Até agora não descobri. A verdade é que só tentei achar um jeito fácil e indolor de aceitar que honestidade não é algo que depende só de mim. Se eu for honesto com alguém não quer dizer que esse alguém vá ser honesto comigo. E entre todas as tristezas que o mundo pode jogar na nossa cara, talvez essa seja a que mais incomoda. Ainda mais por ter sido tão honesto. É triste saber que com o passar do tempo vai ser cada vez mais difícil achar quem seja tão límpida assim por dentro. Alguém que se sente bem justamente por não fazer o mal. Que se orgulhe de tudo que carrega no peito. Até o sutiã.

Mas não faz mal continuar almejando. Vai ver a gente erra por tentar consertar cada vez mais o que não vale à pena ser consertado. E se assim não faz bem, não há o que vá fazer melhorar.